revista Panacea surgiu numa época na qual a internet começou a dar seus primeiros passos, e a importância do registro dessa entrevista está no fato de que nos mostra um Neil Gaiman um tanto diferente do qual o conhecemos atualmente. É visível [de acordo com entrevista] que naquela época Gaiman, como a maioria dos escritores [de quadrinhos] não nutria muito interesse pelo cinema, diferente de agora que procura se envolver com 7ª arte e já teve alguns roteiros filmados/ adaptados. O Gaiman da entrevista é o escritor pós Sandman, buscando seu lugar no mundo dos quadrinhos, e ainda não tinha escrito seu primeiro romance solo Lugar Nenhum, e muito menos Deuses Americanos.
Sem delongas, bom, eis a transcrição dessa entrevista da revista PANACEA Nº 38 [MARÇO/ ABRIL/ 1996]- espero que gostem.
Esta entrevista se deu por e-mail, uma das muitas coisas, extremamente úteis que a internet pode oferecer, e que será uma mão na roda em muito pouco tempo [se o governo brasileiro não fizer muita besteira]. O inconveniente é que ela se assemelha a uma entrevista por fax ou por carta porque é uma entrevista por carta. Só que mais dinâmica e mais barata. O resultado é que as perguntas foram feitas, respondidas, e novas perguntas feitas em cima das respostas, mas sem ter a linguagem corporal e o modo de falar, a entonação e as ênfases do entrevistado, que ajudam sobremaneira na condução de uma boa entrevista. Outro grande problema foi a falta de tempo, que acabou me forçando a concentrar as perguntas e assim, ser obrigado a escrever o que faltou. Aí está, este misto de matéria e Entrevista. Mais entrevistas nesse estilo [com artistas estrangeiros] já estão pautadas. Aproveitem porque é só na Panaceia…
Neil Gaiman é inglês. Ou britânico, depende sobre o que você quer falar.
Na infância, foi um pequeno rato de biblioteca. Leu muito. Tanto, que resolveu que seria escritor. De livros. Mas Gaiman também lia muitos quadrinhos [as histórias de KIRBY chegavam à Inglaterra com um certo atraso, o que fez com que Gaiman as lesse quase todas].
Depois de trabalhar como crítico “cultural” em jornais e revistas Ingleses, resolveu que seria escritor. De quadrinhos. E assim o fez. E fez bem: após a sua estréia, em VIOLENT CASES, foi atrás dos editores da DC- que se encontravam em Londres “caçando cabeças” -, acompanhado de DAVE MCKEAN, e fechou negócio para a produção da minissérie ORQUÍDEA NEGRA. Um pouco depois, Gaiman foi contatado pela editora KAREN BERGER para começar a escrever um título mensal. Nasceu SANDMAN, e Gaiman mudou-se para os EUA.
KAZI: Qual a sua idade?
GAIMAN: 34.
KAZI: Você tem curso superior?
GAIMAN: Não.
KAZI: Por que você mudou para os Estados Unidos? Por causa do trabalho na DC? Você está feliz aí?
GAIMAN: Eu mudei porque minha esposa é americana, e a família dela queria ver as crianças. Estou feliz, apesar de sentir muitas saudades da Inglaterra.
KAZI: Você vive nos EUA com sua mulher e filhos? Quantos anos têm seus filhos? Eles lêem seus quadrinhos?
GAIMAN: Sim. Eles têm 11 e 9. Meu filho, MICHAEL, gosta dos trabalhos que eu fiz para o SPAWN [quadrinho de TODD MCFARLANE, publicado pela IMAGE, editora do próprio Todd].
KAZI: Quais são as diferenças básicas entre os quadrinhos americanos e os quadrinhos ingleses?
GAIMAN: A maioria dos quadrinhos ingleses são antologias semanais.
KAZI: Você sempre escreveu o que gostaria de ler?
GAIMAN: Sempre. Há muito tempo eu escrevi um livro que eu não leria, por dinheiro. Depois que ele foi publicado eu decidi que nunca mais faria isso.
KAZI: Quais são seus escritores de quadrinhos preferidos?
GAIMAN: ALAN MOORE, DAVE SIM, CHESTER BROWN, GILBERT HERNANDEZ, WILL EISNER, JEFF SMITH…
KAZI: Você acha que essa onda de escritores de quadrinhos “autobiográficos” como HARVEY PEKAR [AMERICAN SPLENDOR], CHESTER BROWN [YUMMY FUR, UNDERWATER] ou mesmo PETER BAGGE [HATE] é um avanço na linguagem dos quadrinhos?
GAIMAN: Eu acho que qualquer aumento no número de gêneros e assuntos nos quadrinhos é sempre um avanço.
KAZI: Alan Moore é um escritor esplêndido, e a maioria dos escritores de quadrinhos da DC ou da MARVEL [bem, não tanto dessa última] que perco meu tempo procurando são ingleses. Você acha que Moore foi de importância crucial pra “invasão inglesa” do mercado americano no início dos anos 90?
GAIMAN: Sem dúvida. Sem Alan nada disso teria acontecido.
KAZI: Certa vez você disse sobre o personagem SWOON, de CEREBUS [na verdade, você falou de seu autor, DAVE SIM]: “Ele consegue me imitar, ao menos em Sandman”. Num dos capítulos de “VIDAS BREVES”, enquanto SONHO e DESTRUIÇÃO, estão conversando, DELÍRIO está fazendo algumas “coisas”, e uma dessas coisas é… Cerebus. Foi uma homenagem sua ou de JILL THOMPSON [a desenhista]? O que você acha de Cerebus como quadrinhos literatura?
GAIMAN: Estava no roteiro. Eu acho que Cerebus se dá melhor como literatura quando tenta ser bom quadrinho do que quando tenta ser boa literatura.
KAZI: Você costumava desenhar quadrinhos. Você ainda desenha?
GAIMAN: Eu desenhei urna história chamada “BEING AN ACCOUNT OF THE LIFE OF THE EMPEROR HELIOGABOLUS”, que foi publicada na revista Cerebus 174 [acho].
KAZI: Você acha que a crítica de quadrinhos é um mal necessário? Pergunto isso porque, no Brasil, os críticos não têm formação: eles são fãs. Você acha que é necessário dar aos quadrinhos o status de arte?
GAIMAN: Eu acho que a crítica de qualidade [corno um todo, não apenas “apontar os erros”] é vital para qualquer meio. Mas não, não acho necessário dar aos quadrinhos o status de arte. Você produz trabalhos mais “vitais” se ninguém estiver olhando.
KAZI: Sua experiência como crítico de quadrinhos fez de você um melhor escritor de quadrinhos? Ou apenas fez com que você quisesse se tornar um escritor de quadrinhos?
GAIMAN: Eu nunca me vi corno um crítico muito bom, seja de literatura, cinema ou quadrinhos. Entretanto, conhecer bons críticos foi de grande ajuda – é bom ver as coisas pelos olhos deles.
KAZI: Onde você trabalhou como crítico de quadrinhos e cinema?
GAIMAN: Em várias revistas e jornais ingleses de 1983 a 1987. Eu também resenhava livros nessa época.
KAZI: Que tipo de filmes você gosta? Eu arriscaria dizer Fellilíí…
GAIMAN: Eu gosto de filmes difíceis. Acho FELLINI FASCINANTE, mas sua prioridade não são as histórias, mas as imagens e as pessoas, e eu tendo mais para as histórias. Cineastas que eu admiro: PETER GREENAWAY, JAN SVANK: Major, Bob Fosse e Terry Gilliam.
KAZI: Você já teve vontade de escrever e/ou dirigir um filme? Sobre O que ele seria?
GAIMAN: Às vezes, mas quando isso acontece tomo uma ducha fria ou dou um passeio longo até a vontade passar.
KAZI: Que tipo de música você gosta?
GAIMAN: Tudo. Atualmente estou gostando muito de JOHN CALE e CONLAN NANCARROW.
VIOLENT CASES é tida como a entrada de Gaiman nos quadrinhos, mas a coisa não é bem assim. Gaiman trabalhou em diversas outras revistas na mesma época, com resultados pouco animadores. Não por si, nem pelo meio [médium], mas por ter constatado que o mercado poderia ser pior do que parecia. Hoje, Gaiman recebe convites aos montes para desenvolver projetos, mas falta-lhe tempo.
KAZI: Como foi sua experiência com a revista inglesa 2000 A.D., da EDITORA FLEETWAY?
GAIMAN: Não me impressionou muito. Eu parei de trabalhar com eles quando vi que eles estavam reeditando meu trabalho e não estavam me pagando por isso.
KAZI: Sobre o que era “FUTURE SHOCK”?
GAIMAN: Houve 5 ou 6 “Future shocks” – histórias divertidas, estranhas e curtas com finais esquisitos. A única da qual tenho boas lembranças foi uma discussão de duas páginas sobre a utilização do planeta Terra como um enfeite decorativo.
KAZI: Quem é PAUL GRAVATT? As pessoas no Brasil sabem muito pouco sobre a REVISTA ESCAPE. Qual é a importância de Gravatt e da Escape para os quadrinhos britânicos?
GAIMAN: Paul Gravatt é o atual curador do Museu Inglês de Quadrinhos. Ele editou a Escape, que era uma das melhores revistas de quadrinhos que eu já vi, durante os anos 80.
KAZI: Qual é exatamente o seu papel no quadrinho MR. HERO?
GAIMAN: Eu o inventei, e sugeri JIM VANCE para escrevê-lo. Eles [a EDITORA TEKNO COMIX] me enviam a revista quando ela sai.
KAZI: Ouvi um rumor acerca de um projeto chamado NIGHT CIRCUS, que você escreveria e SIMON BISLEY faria a arte. É verdade?
GAIMAN : Para ser honesto, eu não sei se Night Circus acontecerá algum dia. Veremos…
VIOLENT CASES foi uma das primeiras coisas que li de Neil Gaiman. Um álbum originalmente publicado em preto e branco [serializado na revista Escape] e depois em cores [resgatando a arte maravilhosa de Dave McKean] pela TUNDRA, a extinta editora de KEVIN “Teenage Mutant Ninja Turtle” EASTMAN. A história gira em torno de uma criança e a forma como ela vê um mundo que não compreende: o mundo adulto. O título é uma brincadeira com um mal entendido: os gângster carregavam “violin cases” [caixas de violinos, onde escondiam suas armas].
KAZI: Violent Cases foi uma espécie de despertar para você?
GAIMAN: Um despertar? Suponho que sim. Foi o trabalho mais honesto que fiz em minha obra ficcional, e foi o ponto no qual percebi que o que faz de um [a] artista diferente ou importante é o [a] próprio [a] artista.
KAZI: Estaria Violent Cases completa com MR. PUNCH?
GAIMAN: Eu duvido.
SIGNAL TO NOISE, a segunda Graphic Novel de Gaiman [também em parceria com McKean], foi também serializada em revista, desta vez em THE FACE. A EDITORA VICTOR GOLANCZ publicou o álbum na Inglaterra, e a DARK HORSE nos EUA. SIGNAL TO NOISE [a expressão] refere-se à relação entre sinal e ruído numa transmissão: quanto mais sinal menos ruído, mais compreensível à mensagem, e vice-versa. A história é uma fábula sobre mortalidade, relacionamentos e começos e fins. O pivô é um cineasta [uma homenagem a EISENSTEIN] que descobre estar com câncer, e que talvez não tenha tempo de terminar seu último filme.
KAZI: Você já pensou na possibilidade de encontrar com suas criações quando morrer?
GAIMAN: Não. Às vezes eu imagino se eles iriam vir para me ver quando eles morressem. Afinal de contas, se eu vou me encontrar com meu criador, talvez eles façam o mesmo…
KAZI: Por que você diz, em Signal to noise, que a virada do milênio é em 31 de dezembro de 1999 se, na verdade, ela se dará em 31 de dezembro de 2000?
GAIMAN: Percepção pública. É como o Odómetro de um carro, o momento em que ele passa dos 1000 para os 2000. E o último “fervor de milênio” foi quando [o ano] 999 virou para 1000, não quando 1000 mudou um dígito e se tornou 1001. Eu sei qual Ano Novo eu vou comemorar…
KAZI: Sobre o corcunda, na vila do filme, em Signal to noise: é preciso viver à margem da sociedade para ver as coisas? Seria o corcunda aquele que está realmente livre, em oposição à mulher que estava na prisão?
GAIMAN: Eu não acho: ele está lá mais para ilustrar a forma como uma mente criativa trabalha. Eu preciso de um personagem para [dizer] isso, portanto eu tenho que criá-lo. Mas os marginais frequentemente veem com mais clareza: eles olham de fora, e não de dentro.
KAZI: Apocalipse é salvação? Apocatástase, em português, também significa “doutrina herética segundo a qual, no fim dos tempos, serão admitidas ao Paraíso todas as almas, inclusive a do Diabo”. Você não refere essa acepção em Signal to noise. Você a conhecia? Ela estava escondida intencionalmente?
GAIMAN: Eu não acho. Não. Não em Signal to noise, em momento algum – é um fim, não um começo. Eu não conhecia esse significado de apocatástase, mas agora que você me disse eu provavelmente vou usá-lo na versão para novela radiofônica de Signal to noise.
KAZI: Quando e por onde será irradiada essa versão radiofônica?
GAIMAN: BBC RADIO 3 . Ainda este ano, eu espero.
PUNCH foi a última obra publicada de Gaiman em parceria com McKean. Gaiman refere-se a ela como uma “autobiografia mentirosa”. Nela, o escritor volta ao passado e vê, com seus olhos de garoto, as relações familiares de seu avô, entremeando a narrativa com uma peça de teatro de marionetes secular chamada Mr. Punch [THE MR. PUNCH AND JUDY SHOW], onde um homem mata um bebê, a mãe do bebê, um policial, a Lei, o Demônio e se dá bem no final.
As metáforas não são tão evidentes. Gaiman fez questão de deixar as coisas pouco óbvias [tanto quanto possível], ao ponto de brincar que só ele entenderia a obra. Mas é clara a intenção de expurgar sentimentos passados e dúvidas presentes. Aparentemente sem sentido, Mr. Punch é a obra mais redonda de Gaiman até hoje. Afiada e belíssima. E que não está, ainda, completa.
GOOD OMENS[BONS AUGÚRIOS/BELA MALDIÇÕES] é um livro de Gaiman, escrito em parceria com TERRY PRATCHETT. No livro, o Anticristo nasce e é trocado na maternidade, não recebendo a “educação” que deveria. O Apocalipse fica um pouco diferente das escrituras por causa disso…
KAZI: Mr. Punch é autoanálise?
GAIMAN: Não é autoanálise: é uma autobiografia não confiável [mentirosa], o que é bem diferente.
KAZI: Seus livros, inclusive GOOD OMENS, parecem narrar despertares diferentes. Seria essa sua intenção: acordar ou fazer com que seu leitor acorde?
GAIMAN: Um pouco dos dois. Todas as histórias são despertares, e todo despertar é um momento de criação: é quando nós moldamos o mundo.
KAZI: Sempre há uma história dentro da história em seus livros, e elas sempre se misturam. Isso é bastante claro em Mr. Punch e Signal to noise. É uma “fórmula” ou não? WATCHMEN, de Alan Moore, teria sido uma influência?
GAIMAN: Uma fórmula? Não acho. De certa maneira é uma obsessão se exorcizando. Meus personagens definem-se através das suas histórias. Watchmen, nesse caso, me influenciou menos que as obras ficcionais de BORGES e GENE WOLFE.
KAZI: Você parece bastante interessado em histórias e contadores de histórias e em formas de contar histórias. Foi por isso que você escolheu os quadrinhos? Por que não usar outro meio? Eu li que você gostaria de ser escritor, é verdade?
GAIMAN: Eu gosto de contar histórias. Eu gosto de quadrinho porque é um meio sub-utilizado e é o único lugar onde se pode fazer ficção serializada hoje em dia. Eu já escrevi “meio-livro” [Good omens], e indubitavelmente escreverei mais alguns antes de morrer.
KAZI: Você está procurando padrões nas histórias, uma conexão entre todas as histórias, inclusive a história da sua vida e a de todo mundo? Como se tudo estivesse escrito num grande livro [mais ou menos como o livro de DESTINO]?
GAIMAN: Claro, se não fosse assim, por que escrever?
KAZI: O que você acha de colocarem finais felizes nas histórias antigas?
GAIMAN: Eu acho que as histórias, tal como a água, encontram seu nível, apropriado para a cultura e para o tempo nos quais são contadas.
KAZI: Qual foi o problema com a DC e o álbum Mr. Punch? Por que a DC só imprimiu 15 mil cópias?
GAIMAN: Porque o departamento de marketing [que define a tiragem das revistas] decidiu que iriam imprimir 15 mil cópias. Não faço a menor idéia do porquê.
KAZI: Haverá realmente mais outros dois álbuns, além de Violent Cases e Mr. Punch [uma obra em quatro partes]?
GAIMAN: Possivelmente. Veremos. Para ser honesto, eu não sei – em alguns anos eu posso sentir vontade de escrever o próximo.
KAZI: Eu achei Good Omens engraçado, mas tocante. Você ficou satisfeito com o fim do livro?
GAIMAN: Eu nunca fico satisfeito.
MIRACLEMAN se chamava MARVELMAN, mas uma certa editora Norte- Americana resolveu criar caso… Alan Moore foi o responsável pela volta do herói, nos anos 80. Só que ele voltou mais, er, real. Moore transformou Miracleman em uma espécie de deus; afinal, um ser com poderes virtualmente ilimitado não poderia ser um humano. Comparável ao que fez com o MONSTRO DO PÂNTANO, Moore transformou Miracleman num quadrinho de super-herói digno de ser lido [façanha considerável]. Gaiman herdou [por indicação de Moore] a revista da Eclipse e vinha escrevendo até a falência da editora. Ninguém sabe o que será de Miracleman no futuro. Interessante saber que Gaiman já criticou em entrevista os quadrinhos da IMAGE e o gênero de super-heróis em geral [“clones de STAN LEE de quinta geração“, sendo que um deles seria o próprio Stan Lee].
KAZI: Hoje em dia os super-heróis são bem diferentes do que eram há 30 anos. O que você acha dos super-heróis atuais?
GAIMAN: Eu não sei o que pensar, realmente. O que sei é que tudo o que me lembro dos super-heróis da minha juventude é amenizado por uma nostalgia tema, e que os heróis de hoje. Bem, não tenho muita saudade deles.
KAZI: Você acha que, se os super-heróis realmente existissem, eles se pareceriam com a sua versão de Miracleman?
GAIMAN: Não.
KAZI: O que está acontecendo com a revista Miracleman da Eclipse? MARK BUCKINGHAM [o desenhista] já foi pago?
GAJMAN: Não, Mark ainda não foi pago. Acredito que a Eclipse abriu falência. Você sabe tanto quanto eu sobre o futuro [da revista].
SANDMAN dispensa apresentações? Talvez. Mas falar um pouco não fará mal a ninguém. Há sete “seres” sencientes chamados PERPÉTUOS. Os Perpétuos são irmãos, ou algo que eles chamam de irmãos, e personificam potencialidades de todos os seres vivos do Universo. Antes mesmo de nascer, todo ser tem traçado seu Destino. Quando nasce, já está fadado à Morte. Antes mesmo de ter consciência de sua individualidade, o indivíduo já pode Sonhar. E o instinto de Destruição lhe assegura a sobrevivência, assim tomo o Desejo o ajuda a perpetuar a espécie. Consciente, um ser está à mercê de outros sentimentos, tais como o Desespero e o Delírio [ou o Deleite]. Ei-los, os sete Perpétuos: DESTINY, DEATH, DREAM, DESTRUCTION, DESIRE, DESPAIR e DELIRIUM.
Sandman é Sonho, e o SONHAR que habita. Gaiman usa esse palco para contar histórias, fundamentalmente, sejam elas tiradas do folclore celta, da mitologia grega, hindu ou egípcia; sejam contos de fadas ou fábulas modernas. Sejam devaneios filosóficos de JOHN MILTON ou de Neil Gaiman.
A EDITORA GLOBO, em parceria com a DEVIR, publica a revista no Brasil [quase] mensalmente.
KAZI: Há uma relação nos relacionamentos entre você e seu avô e entre Delírio e Sandman? Isso me pareceu evidente na cena onde você/Delírio tem que lidar com a mesma situação quando seu avô/Sandman está em choque [Mr. Punch e “Brief lives”].
GAIMAN: Suponho que sim. Sim, a loucura me assusta – talvez mais do que qualquer coisa. E adultos “indefesos” sempre nos forçam a amadurecer de maneira mais dura do que deveríamos…
KAZI: Sandman é uma história sobre um contador de histórias [ou um guardião de histórias], de certa maneira. Você deixa isso claro o tempo todo, especialmente em “SONHOS DE UMA NOITE DE VERÃO” [uma das melhores histórias até agora]. Você conhece algum RPG? Já pensou em escrever algum, como os da WHITE WOLFE [WEREWOLF/ LOBISOMEM é dedicado a você]? Há alguma possibilidade da White Wolf publicar algum quadrinho escrito por Neil Gaiman?
GAIMAN: Por que jogar RPG? Eu tenho que ser cada um dos personagens que eu criei todos de uma vez. A White Wolf vai publicar um livro infantil que escrevi e Dave McKean ilustrou.
KAZI: Qual o nome desse livro? Quando ele vai ser lançado?
GAIMAN: THE DAY I SWAPPED MY DAD FOR TWO GOLDFISH [O DIA EM QUE TROQUEI MEU PAI POR DOIS PEIXINHOS DOURADOS]. Espero [que saia] em maio de 1996.
KAZI: Sandman é um personagem imaturo e egoísta. Você acha que essa faceta adolescente da personalidade é que fez dele tão popular?
GAIMAN: Eu não acho que sua personalidade adolescente é o que o faz tão popular: ele poderia ter uma personalidade completamente diferente e ainda assim ser popular. Mas Sandman é a história de uma adolescência.
KAZI: Quanto tempo você leva para escrever uma história de Sandman?
GAIMAN: Um número de Sandman leva em torno de um mês para ser
escrito.
KAZI: Morte é, de certo modo, sua personagem de maior sucesso. Mais do que o próprio Sandman, Morte é adorada pelo público [ao menos aqui no Brasil], e me parece que você a mantém sob controle. É isso mesmo?
GAIMAN: Sim.
KAZI: Você tem vontade de fazer mais histórias com a personagem Morte depois de parar de escrever Sandman?
GAIMAN: Eu farei, com certeza, mais uma história da Morte: “THE TIME OF YOUR LIFE”. Outras, bem, veremos.
KAZI: Você aborda assuntos que poderiam lhe causar problemas, como homossexualismo, ou um button onde se lê: “I CHOSE TO HAVE A BABY BUT I’M GLAD I HAVE A CHOICE” [“eu escolhi ter um bebê mas estou feliz por ter escolha”] … Você tem problemas com sua editora ou com o público americano por causa disso?
GAIMAN: Não. [A associação] THE CONCERNED MOTHERS OF AMERICA [algo como as mães preocupadas da América] anunciou, alguns anos atrás, que iria boicotar Sandman, mas as vendas não foram afetadas.
KAZI: Em Sandman não há uma religião “suprema”: há deuses que surgem e morrem. Entretanto, você parece ter mostrado um certo cuidado quando falou do deus judaico-cristão. Por exemplo: quando você diz que Lúcifer e Deus são mais poderosos que Sandman, que são os dois seres mais poderosos do universo. Você tem alguma religião?
GAIMAN: Eu não vejo evidência que o “Criador” mencionado em “ESTAÇÃO DAS BRUMAS” seja o deus judaico-cristão. [Lúcifer certamente não é judaico-cristão: ele é Miltoniano.].
KAZI: Não só eu, mas as pessoas com quem converso sobre o seu trabalho em Sandman às vezes não sabe quem está desenhando a revista. Seu texto é tão forte que nós quase só lemos os balões. Às vezes há um grande artista, como MARC HEMPEL ou P. CRAIG RUSSEL, mas isso não é frequente. É você quem escolhe os artistas de Sandman, ou eles são impostos pela DC?
GAIMAN: Um pouco dos dois.
KAZI: Tem havido muitas pistas indicando que Sandman vai morrer. Pistas demais para me fazer achar que ele realmente vai. Sandman vai morrer até o fim da revista? [Ei, eu posso tentar, não posso?].
GAIMAN: Boa pergunta.
KAZI: Falando de finais, quando a revista vai acabar?
GAIMAN: No número 75.
KAZI: “Ali Bette’s stories have happy endings. That’s because she knows where to stop. She’s realized the real problem with stories – if you keep them going long enough, they always end in death.” [“Todas as histórias de Bette têm finais felizes. É porque ela sabe quando parar. Bette descobriu o verdadeiro problema com as histórias se você deixá-las ir longe demais, elas sempre acabam em morte.”] Sandman já foi longe demais?
GAIMAN: Quase.
KAZI: “THE KINDLY ONES” parece estar se alongando por mais capítulos do que deveria. É por causa do seu contrato com a DC?
GAIMAN: Não, não tem nada a ver com o meu contrato com a DC. O fato é que “The kindly ones” foi escrita para passar por todos os personagens e temas de Sandman, e há muito mais do que eu achei que haveria…
KAZI: Eu ouvi falar de minisséries que você faria com os outros Perpétuos, e eu acho que Delírio está crescendo em importância nas suas histórias. Quantas serão? Quando sairão?
GAIMAN: [Farei] uma para cada Perpétuo, espero.
KAZI: Quanto vai durar “THE WAKE” [“O funeral”, o último arco de história de Sandman]?
GAIMAN: “The wake” terá três capítulos.
KAZI: Sobre o que será “THE TEMPEST” [história a ser publicada após o fim da revista]?
GAIMAN: Vai ser sobre Shakespeare, e [a história] se dará em 1611.
KAZI: Lendo todos os capítulos de Sandman [até o número 67, o último disponível no Brasil], sinto que você vai deixar um monte de pontas soltas, de perguntas sem respostas. Algumas delas, eu acho, devem ficar sem resposta, mas você vai voltar a algumas nas minisséries?
GAIMAN: A algumas delas, sim. Mas vai haver uma boa dúzia sem resposta.
KAZI: Como você conheceu Dave McKean [o artista das capas de Sandman]?
GAIMAN: Nós nos encontramos [para fazer] um quadrinho chamado BORDERLINE, que nunca foi publicado, e gostamos do trabalho um do outro…
KAZI: Há muitos rumores no Brasil sobre um número especial do Sandman com McKean fazendo a arte. Algum projeto de verdade?
GAIMAN: Há idéias, mas isso não vai acontecer por algum tempo ainda…
KAZI: Há algum [a] artista com o [a] qual você gostaria de trabalhar e ainda não o fez?
GAIMAN: BARRY WINDSOR SMITH, talvez…
KAZI: A DC é dona de todos os personagens de Sandman. Isso não desanima?
GAIMAN: Claro.
KAZI: Você vai trabalhar de novo para uma editora que não deixe você possuir legalmente os direitos sobre suas criações?
GAIMAN: Eu duvido.
O que faria um escritor tido em consideração pela profundidade de sua obra escrevendo histórias para a Image, uma editora que não prima por histórias, digamos, inteligentes? Na verdade, a Image é a exacerbação do gênero dos super-heróis, que acaba definitivamente com qualquer resquício de história inteligível. Como num filme pornô, onde só importam as cenas de sexo explícito, às páginas de Spawn, por exemplo, são base para desenhos arrojados de “fortões de maiô lutando no espaço sideral”. MIKEY, filho mais velho de Gaiman, seria o responsável pela façanha. O que não faz um pai consciencioso…
Já o trabalho com a Marvel veio através da gravadora de ALICE COOPER com desenhos de MICHAEL ZULLI, Gaiman fez a adaptação para quadrinhos do mais recente álbum [THE LAST TEMPTATION] de Cooper.
KAZI: Como foi trabalhar para a Marvel?
GAIMAN: Eu não fiquei muito impressionado com a Marvel.
KAZI: Como foi escrever uma história para o Spawn?
GAIMAN: Muito, muito divertido.
KAZI: Como foi escrever mais uma história para o Spawn?
GAIMAN: Eu não estava com muita vontade de trabalhar…
KAZI: Você vai escrever outro título mensal em breve?
GAIMAN: Não!
Enquanto você lê esta entrevista, é possível que Neil Gaiman ainda esteja no Brasil, mais precisamente em São Paulo, para receber o TROFÉU HQ MIX de melhor roteirista estrangeiro. Desde nosso primeiro contato, no ano retrasado, Gaiman diz que tem vontade de visitar o país. Corra e pegue o autógrafo dele na PANACEA!
KAZI: Ouvi dizer que você estaria no Brasil em abril. É verdade?
GAIMAN: Esse é o boato, realmente. Pergunte a Globo…
KAZI: O que você conhece do folclore brasileiro? Você citou O CURUPIRA na minissérie ORQUÍDEA NEGRA.
GAIMAN: Conheço um pouco, mas não tanto quanto gostaria.
KAZI: Você conhece algum quadrinhista brasileiro? Ou escritor?
GAIMAN: Ainda não. Mas posso conhecer em abril.
KAZI: Você é reconhecido nas ruas nos Estados Unidos? Como você lida com fãs sedentos por autógrafos?
GAIMAN: Eu só sou reconhecido ocasionalmente. Fico meio embaraçado quando não estou esperando por isso, mas lido bem com a situação quando estou esperando…
KAZI: O que você espera da sua viagem ao Brasil?
GAIMAN: Problemas com o fuso-horário e pessoas legais.
KAZI: Você conhece as discussões sobre Sandman na USENET [fórum de debates da Internet]? O que você acha delas?
GAIMAN: Eu me sinto lisonjeado que isso aconteça, mas tenho visto muito pouca coisa de valor nas mensagens nos últimos quatro anos. Ou melhor, as mensagens interessantes ocasionais estão soterradas pela grande quantidade das desinteressantes. Mas as observações certamente são úteis, ainda que incompletas [e às vezes erradas].
KAZI: Você vê algum futuro para os quadrinhos nos CD-ROMs ou nas tecnologias de produtos multimídia?
GAIMAN: Não, realmente. Eu espero que os CD-ROMs e similares achem um conteúdo próprio…
ANOTAÇÕES NA AREIA:
I- A década de 80 começou a ser marcada pelas facilidades provindas pelo progresso tecnológico da época, algo que facilitou e muito aos FANZINEIROS produzir em maior quantidade os seus ZINES. No entanto, tais facilidades também aumentaram a elevação dos custos, e o desequilíbrio econômico, no final dessa mesma década, acabou levando o país à hiperinflação, como consequência muitas editoras fechando as portas e muitos fanzines diminuindo sua produção, quando não extintos. Por consequência, o editor do fanzine POLÍTIQUA, JOSÉ CARLOS RIBEIRO, denominou esse novo período COMO CRISE NOS INFINITOS FANZINES, uma alusão à saga CRISE NAS INFINITAS TERRAS da editora americana DC COMICS. Os fanzines passaram então ter como meta não a obtenção de lucro, mas meios de auto sustento, continuidade e evolução.
O significado de zine, segundo o site FANZINEEXPO.WORDPRESS.COM “vem da contração da expressão em inglês fanatic magazine, que significa em português revista de fãs. E o que isso significa? Significa que os fanzines são publicações feitas por pessoas e para as pessoas que gostam de um determinado tema em comum, sejam elas amadoras ou profissionais”.
Durante a ressaca da Crise nos infinitos fanzines, na década de 90, entusiastas da mídia alternativa começaram a batalhar dentro do mundo de publicações independentes brasileira, entre eles um cara chamado JOSÉ MAURO KAZI que criou o FANZINE PANACEA em Osasco, São Paulo- este aluno da USP. A Panacea inicialmente era um folheto de oito páginas fotocopiadas no formato meio-ofício, contendo histórias em quadrinhos, artigos sobre HQS, música e também textos literários. Durou 33 edições, no entanto chegou a ganhar o TROFÉU ÂNGELO AGOSTINI no ano de 1992 como melhor fanzine. KAZI é lembrando num misto de amor e ódio, pois para sugerir uma atmosfera mais profissional ao fanzine publicava artigos usando pseudônimos, algo que muitos editores na época consideravam ser antiético. E havia também o fato de sua criticas serem extremamente diretas, sem fazer nenhum tipo de concessão. Apesar disso, o fanzine, após, seu termino acabou virando uma revista de 80 páginas, a PANACEA: A REVISTA BRASILEIRA DE QUADRINHOS (E OUTROS BICHOS), comportando dessa forma mais espaço para resenhas de quadrinhos, música; e entrevistas com os mais variados escritores dos quadrinhos como ALAN MOORE, NEIL GAIMAN, DAVID MAZZUCCHELLI e FLAVIO COLIN. Contabilizando as edições como zine e como revista foram 40 edições até o término definitivo. Sem sombra de dúvidas a Panacea merece ser lembrada pelo sua importância cultural e dedicação ao universo dos quadrinhos.
II- NA MESMA EDIÇÃO ENCONTRAMOS UMA TIRA SATIRIZANDO DAVE MCKEAN:
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: